3.11.11

A feijoada de Drummond




Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de Outubro de 1902 e como bom mineiro exaltava a culinária da sua terra, rica em sabores e misturas.
Se estivesse vivo, o escritor Carlos Drummond de Andrade completaria esta semana 109 anos. Para homenageá-lo, o dia 31 de outubro foi batizado como “Dia D”- o “Dia Drummond”. Uma data para celebrar a vida e obra deste importante ícone da poesia brasileira.

Como todo grande poeta sensível ao mundo, Drummond percebeu que a arte de cozinhar tem nas origens a mesma alquimia do fazer poético, boa poesia e boa cozinha se processam intrincadamente ligadas no mesmo canto flutuante da alma. Rubem Alves tinha a mesma certeza quando disse "Escrevo como quem cozinha. Minha cabeça é uma cozinha. O cozinheiro cozinha pensando no prazer que sua arte irá causar naquele que come. Eu escrevo pensando no prazer que o meu texto poderá produzir naquele que me lê."

"É este o secreto desejo de cada escritor: o prazer do leitor."

Um dia, pensando sobre o prazer da feijoada, Drummond escreveu um poema, tentando unir os prazeres da mesa e da leitura poética. Penso que ele sabia, ao ter esta idéia, que cozinhar é um caminho tão fácil para criar felicidade quanto escrever. Seu poema é único e apenas dele, para deleite de quem o lê. Já a feijoada que ele ensina pode ser feita e refeita, para o prazer de quem dela provar.
Deu um pouco de trabalho seguir "ao pé da letra", a receita do poeta, assim como ele deve ter tido ao escrever seus versos, mas o prazer emanado do cheiro, das carnes, da panela dando vida à poesia, apaga todo o cansaço.

Acompanhamos o poema com arroz, laranja e couve refogada, se for uma heresia em Itabira, esperamos que o poeta nos perdoe. Mas ficou maravilhoso!




Feijoada à Mineira
Carlos Drummond de Andrade


Uma velha e perfeita cozinheira a quem pedi a fórmula sagrada
Da feijoada à mineira,
Mandou-ma. Ei-la: “Receita de feijoada –
Tome coisa de um litro de feijão
Preto, novo, sem bicho,
E, depois de catado com capricho,
Jogue no caldeirão.
(Com feijão que não seja preto é à toa
tentar fazer feijoada.
E se teimar, não cuide que sai boa;
Sai não valendo nada.)
Quando estiver o caldeirão fervendo
Ou antes, deite o sal,
As mãos de porco, orelhas e, querendo,
Focinhos e rabo; isto (está claro) tendo,
Porque não tendo é o mesmo, não faz mal.
Se, além desses preparos, deitar nela
Linguiça e mais um osso de presunto,
Só o cheiro da panela
Faz crescer água à boca de um defunto.
Eu já ia me esquecendo (que memória)
Da carne seca e da couve.
Feijoadas sem elas, qual! É a história…
Não há nem nunca houve.
Depois de tudo bem cozido, a ponto,
Machuque bem um pouco do feijão
E pronto.
Mas machuque só a parte que senão,
Em vez de feijoada sai pirão.
Eis, aí está o prato preparado…
Minto: falta ainda o molho
Que embora simples é o segredo o escolho
De muito bom guisado.
O molho faz-se com vinagre, ou então,
(Para sair a coisa mais completa)
com suco de limão
e bastante pimenta malagueta.
Sal, ponha quantum satis.
Não vai ao fogo nem ligeiramente,
Exceto se levar também tomates,
Cebola, ou outro que tal ingrediente.
Co/a feijoada, a clássica, a mineira
É compulsório o uso da farinha.
Como bebida, um trago de caninha.
Há quem regue o vinho; mas é asneira.
Quanto à caninha fala-se
Ou não se fale, a mim é indiferente.
Eu tenho a firme opinião que um cálice
Nenhum mal faz à gente.”
Eis aí a receita.
Publico-a sem responsabilidade.
Experimentem, se sair bem feita
E eu, no dia, estiver nessa cidade…
Não insinuo nada:
Apenas lembro que ninguém rejeita
Convite para almoço de feijoada.

ANDRADE, Carlos Drummond de (org.). Brasil Terra e Alma; Minas Gerais